Em meio a discussão sobre a implementação do Ensino Domiciliar no Brasil, muitas dúvidas ainda pairam sobre a eficácia deste modelo. Trata-se de uma modalidade praticada em vários países (EUA, Noruega, Finlândia, etc). Portanto, não é nenhuma novidade. Em nenhum desses países, o homeschooling atende a uma parcela considerável da população.
Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), o Ensino Domiciliar é uma opção para pais que querem oferecer aos filhos uma “educação personalizada que possa explorar o potencial, os dons e os talentos de cada criança ou adolescente”. No entanto, vale destacar que a pretensão de uma educação “livre” das amarras do Estado pode ter efeitos colaterais. Especialmente se estiver descolada do amplo conhecimento científico e laico oferecido pelo sistema oficial de ensino.
Para entender um exemplo desse efeito colateral, vale a pena conferir o documentário “Rezar e Obedecer”, que entrou recentemente no catálogo da Netflix. Trata-se da história real de uma comunidade dissidente de mórmons no interior dos EUA, intitulada Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, então liderada por Warren Jeffs.
Nesta comunidade, as lideranças religiosas educavam a juventude para a poligamia e promoviam casamento de meninas (algumas com até 12 anos de idade) com adultos, bem como as expunham a situações de abuso sexual infantil e tráfico humano. Todos esses comportamentos foram naturalizados dentro da comunidade a partir de uma educação alienada Os estudantes não frequentavam escolas do governo.
As crianças estudavam em livros com páginas propositalmente arrancadas. Os conhecimentos científicos não faziam parte da formação intelectual. Não havia espaço para teorias laicas. As bibliotecas não dispunham de livros sobre cultura geral. Apenas a formação cristã estava disponível, com o objetivo de cristalizar os valores que mantinham a coesão social necessária para que as práticas específicas da comunidade acontecessem. Tudo era supervisionado pela liderança de Warren Jeffs, que estabelecia as bases intelectuais dessa rede paralela de educação. Sem exagero, ele criava conhecimentos e teorias, que eram repassadas nas atividades educativas locais, e que favorecem a sua liderança.
Os jovens que discordaram e que fugiram da comunidade, relatam o quão difícil era conviver com as pessoas de fora daqueles limites: não sabiam como se comportar, se vestir e interagir socialmente. Não conheciam as convenções, e os programas de TV. Uma das jovens dissidentes afirmava que se sentia envergonhada por não saber o nome do presidente dos EUA. Isso não era ensinado. Quem tiver curiosidade de saber mais, vale a pena assistir o filme.
Encerro dizendo que nem todas as famílias que escolhem o ensino domiciliar fora do Brasil (em nosso país ele é inconstitucional) são conservadoras. No entanto, o exemplo que tratamos neste texto não é distópico, tampouco uma ficção. Precisamos ficar atentos, numa eventual regulamentação desta modalidade, aos mecanismos para a sua execução prática. Quais serão os preceptores das crianças? Como garantir que o currículo seja respeitado e que os estudantes tenham direito às aprendizagens que estão nas diretrizes nacionais? Como supervisionar as “redes paralelas” de ensino que surgirão para apoiar essas crianças? Quais conhecimentos estarão presentes nos recursos didáticos e quais não? A educação estará a serviço de quais objetivos e finalidades?
O perigo não está no que conseguimos enxergar. E sim no que estará no silêncio das atividades pedagógicas, suas intencionalidades e no resultado delas para a sociedade.
João Paulo Cêpa é ex-secretário de Educação e Esportes de Caruaru-PE, consultor educacional e gerente de Articulação e Advocacy do Movimento pela Base
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